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Extinção da cláusula de barreira faz candidatos negros avançarem nos concursos para magistratura

A fotografia que abre esta matéria é simbólica. Na escadaria do Palácio da Justiça, no centro histórico da capital paulista, entre os 126 aprovados no maior concurso para a magistratura da história da Corte de São Paulo, há oito juízes e juízas negras. Eles correspondem a 6,1% do total de selecionados, no 190.º certame, realizado em julho de 2023, mas representam o percentual mais elevado de negros já admitidos em concurso realizado pela Justiça do estado. Fato semelhante ocorreu no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), quando 143 candidatos cotistas ultrapassarem a primeira fase do certame para juiz substituto, em novembro do ano passado, contra apenas 12 dos inscritos na disputa anterior, feita em 2015.   A maior representatividade de negros está amparada na Resolução n. 516/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ato normativo eliminou a cláusula de barreira possibilitando aos concorrentes cotistas a admissão nas fases subsequentes da disputa. Anteriormente, era aplicada nota de corte igualmente a todos os candidatos. Assim, se a menor nota alcançada por um dos inscritos na ampla concorrência fosse, por exemplo, 8,0, quem tirasse nota inferior não podia prosseguir na disputa.  A mudança no texto da resolução, originalmente editada em 2009, possibilitou que os concorrentes negros sigam para a fase seguinte ao alcançarem a nota 6,0. No último concurso promovido no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), quase metade dos 1,9 mil cotistas seguiram para a segunda etapa. Em 2021, com a cláusula de barreira, de 2.335 candidatos negros inscritos, somente 128 conseguiram avançar. Se, no certame de 2023, a manutenção de 882 candidatos representou percentual de 46,4%, em 2021, foi de apenas 5,4%. Ou seja, no ano passado, o total de candidatos negros que continuaram na disputa é quase seis vezes maior do que no concurso anterior. A proporção de candidatos negros aprovados no último exame é 23,43% maior em relação ao anterior.   Cenário semelhante foi identificado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). A corte assegurou que as políticas públicas de incentivo à equidade racial foi o que motivou mais candidatos a optarem pelas vagas reservadas a negros e pardos. No concurso, com edital publicado em março de 2023, após a primeira etapa, de 9.603 inscritos, sendo 1.476 autodeclarados negros, foram convocados 1.007 candidatos para a realização das provas Escrita Discursiva e de Prática de Sentenças.   A nota de corte entre os candidatos de ampla concorrência foi de 8,2 pontos. Já os candidatos negros e pardos com notas iguais ou superiores a 6,0 foram convocados, o que correspondeu ao dobro de concorrentes da ampla concorrência. Assim, 603 candidatos prosseguiram no certame concorrendo às seis vagas destinadas à cota racial, enquanto 342 disputaram 23 vagas da ampla concorrência e 62 concorreram à vaga destinada à pessoa com deficiência.    Reforço A extinção da cláusula de barreira reforça o trabalho iniciado com a Resolução CNJ n. 203/2015, que assegurou aos negros reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Formulada a partir do Estatuto da Igualdade Racial, a política pública judiciária pretendia tornar mais significativa a presença de negros na Justiça brasileira.   Não foi o que ocorreu. O Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, publicado em setembro de 2023, pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ), revelou que apenas 1,7% dos magistrados e magistradas se declarou preto ou preta, 12,8% se autointitulam pardos, e a maioria, 83,8%, se identificou como branca.   Dos magistrados ativos que se declararam negros, apenas 0,5% foram aprovados por meio das cotas raciais, regulamentadas pela norma de 2015. Dos que tomaram posse a partir de 2016, 3,5% ingressaram por cota. Ou seja, a maioria de juízas e juízes negros enfrentou a ampla concorrência para ingressar na carreira e nem o percentual de vagas destinados a eles assegurou o acesso às vagas.  Ao participar do lançamento do diagnóstico, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Karen Luise de Souza, sublinhou que a política de cotas não estava cumprindo seu papel suficientemente. “Se temos apenas 3,5% de pessoas ingressando na magistratura pelo sistema de cotas, não alcançamos a meta”, destacou.  A projeção é que se chegasse perto da equidade por meio da política, o que não foi constatado. Após a pulgação desses dados, a previsão é de que isso possa levar até 40 anos.  Ao defender a maior participação das pessoas negras no Judiciário, a juíza enfatiza que “a eliminação da cláusula de barreira é ferramenta essencial para promover a inclusão racial e dar efetividade à política de cotas. Pessoas que antes seriam eliminadas nos concursos, hoje avançam e são aprovadas. Essa mudança reduz desigualdades, amplia a inclusão e contribui para a construção de um Judiciário verdadeiramente representativo e à altura da persidade do nosso povo”, pontua.  Essa persidade é valorizada também no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Apesar de ainda não ter promovido concurso para juiz substituto após o fim da cláusula de barreira, desde a implantação da política de ações afirmativas, por meio da Resolução CNJ n. 203/2015, a corte gaúcha não estabelece cláusula de barreira ou nota de corte para os candidatos negros na prova objetiva. Assim, nos certames abertos nos anos de 2015, 2017 e 2019, bastava o atingimento da nota 6 para a admissão dos candidatos negros nas fases subsequentes.  No último exame realizado, em 2019, foram recebidas 9.704 inscrições, das quais 1.169 foram de candidatos autodeclarados negros. Desses, 148 foram aprovados na prova objetiva, 24 na prova discursiva, seis na prova de sentença e quatro na prova oral, o que correspondeu a 4,65% do total de 86 candidatos aprovados.  Insuficiente Certa de que é preciso ir além das cotas, Karen explica que o fim da cláusula de barreira representa um grande avanço, mas deve ser acompanhado por outras ações afirmativas. “Queremos mais juízas e juízes negros na magistratura. Para isso, é fundamental que sejam adotadas políticas complementares, como bolsas de estudo e programas de suporte”, salienta a magistrada, destacando que essas medidas não somente aumentam a representatividade racial, mas reduzem as desigualdades estruturais que historicamente limitaram o acesso da população negra ao Judiciário.  Hoje juíza, Raianne Galiza Marcolino dos Santos tomou posse em julho: “sem instrumentos de acesso à preparação, não há como trilhar o caminho até a aprovação” – Foto: Paulo Santana/TJSP. Esse é o ponto crucial, opina a carioca e agora juíza Raianne Galiza Marcolino dos Santos. Na penúltima fileira da foto do TJSP, que dispôs os aprovados por classificação, a magistrada dedicou seis anos aos estudos para conquistar a vaga. “Contei com 100% de bolsa nos três anos do curso preparatório da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, mas, para me manter, trabalhava como residente da Procuradoria-Geral do Município e depois na Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro”, relembra. Essa jornada diária de estudo e trabalho ainda era acrescentada por quatro horas de idas e vindas dentro do transporte público. Nesse meio tempo, enfrentou outras cinco seleções para a magistratura. “Fui aprovada no sexto concurso que fiz, em São Paulo. Morava no Rio. No curso preparatório, nos diziam que demora de sete a oito anos para um candidato ser aprovado”, relembra. Ela diz que, além de disciplina, inteligência emocional e foco no objetivo, é preciso fôlego. “Não só porque é como uma corrida de longo percurso, mas os candidatos de menor poder aquisitivo ficam pelo caminho por não conseguirem conciliar os elevados gastos com o curso preparatório e a necessidade de trabalhar para o sustento”, opina.    Instalada em um dos gabinetes da Comarca de Registro, no Vale do Paraíba, a juíza Raianne defende o sistema de cotas, mas salienta que é preciso ir além: “sem instrumentos de acesso à preparação, não há como trilhar o caminho até a aprovação”, avalia. A filha de pai professor de Física e mãe dona de casa, caçula de três irmãos, acostumou-se a valorizar os estudos, incentivada pelo ambiente familiar, “tive bom preparo, mas nada veio fácil”.  O que planejou para sua carreira profissional, agora quer concretizar trabalhando “na defesa dos direitos dos mais vulneráveis, inclusive contribuindo para difundir os meios de acesso dos negros à magistratura”, resume a magistrada.  Pluralidade  Para ampliar a presença de negros e negras, bem como de indígenas e pessoas com deficiência nos quadros da magistratura, o presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, lançou um programa de bolsas de estudo. “Estruturamos essa iniciativa para aumentar a competitividade de candidatos que historicamente têm maior dificuldade de concorrer em igualdade de condições”, esclarece a secretária-geral, Adriana Cruz.   Em quase 20 anos de existência do CNJ, Adriana Cruz é a primeira mulher, e a primeira negra, a ocupar a cadeira da Secretaria Geral do órgão. “Ser a primeira não deve ser mérito, precisamos ultrapassar a barreira dos primeiros, primeira mulher, primeira negra ou negro”, exemplificou. “Estamos em pleno século 21 e ainda celebrando os primeiros. Isso é muito grave”, condenou.   Magistrada do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2), ela espera que o programa para a concessão de bolsas fortaleça a política de cotas. Adriana complementou que uma ação amplia a possibilidade de êxito da outra. “Ao oferecer capacitação a um maior universo de pessoas aptas a concorrer aos cargos, vamos construir um Judiciário mais plural e representativo do que encontramos na sociedade, contribuindo para a oferta de melhores serviços aos jurisdicionados”, conclui.  Texto: Margareth Lourenço Edição: Thaís Cieglinski Agência CNJ de Notícias Número de visualizações: 38
13/11/2024 (00:00)
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